segunda-feira, 23 de agosto de 1999

O empirismo mitigado como via de superação do aristotelismo

Antonio Paim (IBF)

Após a expulsão dos jesuítas, Pombal procurou banir o aristotelismo da cultura portuguesa mediante a reforma da Universidade. Depois de sua morte, contudo, esse projeto amesquinhou-se, refluindo para o ensino secundário. Na época, o chamado ensino popular (que depois se transformou no primário) inexistia nos países católicos. De modo que a herança pombalina, com a qual tiveram de imediato que se defrontar os brasileiros seria no âmbito daquele nível de ensino (ainda na forma de aulas régias porquanto sua agregação num único instituto, o Colégio Pedro II e os Liceus Provinciais, seria fenômeno de fins da década de trinta e começos da de quarenta do século passado, quando a Escola Eclética despontava para merecer a preferência, consumando a superação do modelo substitutivo do aristotelismo que aqui nos propomos caracterizar). Nessa caraterização vamos também nos limitar à versão do denominado empirismo mitigado na feição de que se revestiu a partir de um texto de Genovesi. Tal é, em síntese, o objeto desta comunicação que nos esforçamos para manter nos limites estabelecidos pelos organizadores deste Colóquio.
Com a Reforma Pombalina de 1772, é criada a Faculdade de Filosofia Natural, cujo programa abrange estas matérias: Lógica; Metafísica; Ética; História Natural (zoologia, botânica e minerologia); Química teórica e prática.
Os cursos de matemática eram ministrados em faculdade autônoma que tinha essa denominação.
São adotadas pela Universidade na versão latina, as Instituições de Lógica e Metafísica de Antonio Genovesi (1713/1769), aportuguesado em Genuense. As Instituições de Lógica são traduzidas em 1785 por Bento José de Souza Farinha e, em 1786, por Miguel Cardoso. Esta última tradução mereceria outras edições em Portugal (2ª ed., 1806; 3ª ed., 1842). As Instituições de Metafísica somente seriam traduzidas em 1790 (Lições de metafísica feitas para uso dos principiantes, traduzidas em português por Bento José de Souza Farinha, Lisboa, 1790, 112 p.). Circulavam edições latinas tanto com os dois textos em conjunto (Institutiones Logicae et Metaphysicae) como em separado.
Para o ensino de moral foram introduzidos dois compêndios: o de Heinécio (João Teófilo Heinecke, alemão, 1681/1741) - Elementos de Filosofia Moral tirados do latim em linguagem da edição de 1765 por Bento de Souza Farinha, Lisboa, José da Silva Nazaré, 1785, 128 p. reeditados pela Academia de Ciências de Lisboa em 1835 - e o de Eduardo Job (Eduardo Job de São Colomano, austríaco, 1730/1821) - Institutiones Philosophiae Praticae, editadas sucessivamente em latim, a partir de 1784, finalmente traduzidas em 1846 por João Baptista Correia de Magalhães. Ao todo, mereceu oito edições em Portugal e duas no Brasil.
Por Carta Régia de 24 de janeiro de 1791, o ensino de Filosofia Racional e Moral é eliminado da Faculdade de Filosofia e incluído no quadro das disciplinas do Colégio das Artes. O currículo da Faculdade de Filosofia é completado com a introdução de uma cadeira de Botânica e Agricultura. Assim, em menos de vinte anos a filosofia é relegada aos estudos menores, equivalentes ao que mais tarde se denominaria de ciclo secundário.
Os compêndios editados nessa fase configuram o que seria batizado de empirismo mitigado. Essa denominação foi sugerida por Joaquim de Carvalho (1892/1958), tratando-se de uma expressão muito feliz porquanto destaca o essencial, isto é, ausência de problematização do empirismo. Enquanto nessa corrente, tanto na Inglaterra como na França, no mesmo período, a problematização do conceitos-chave iria fecundar a meditação posterior, em Portugal, como espero demonstrar, evitou-se ciosamente tudo aquilo que pudesse desviar da rota principal - difusão pura e simples de uma nova doutrina -, a começar da crítica ao aristotelismo até então dominante.
Na Inglaterra, ao distinguir qualidades primárias de secundárias, Locke deu ensejo a que se pudesse tornar meramente subjetivas as sensações em seu conjunto. Visando superar a dificuldade, Hume denominaria de “impressão primeira” essa referência inicial do processo do conhecimento. Para isso teve, entretanto, que estabelecer esta distinção: “todos os objetos da razão humana ou de nossas investigações podem se dividir em dois gêneros, a saber, relações de idéias e de fatos”. As ciências do primeiro tipo (geometria, álgebra e aritmética) se constituem de proposições intuitiva ou demonstrativamente certas, que se podem descobrir a partir do pensamento, sem depender em nada do que existe no universo. Quanto à relação entre fatos, o que se pode dizer é que obedecem ao princípio de causa e efeito. A experiência é o único fundamento de nossas afirmações a respeito dessa última relação. As conclusões retiradas da experiência partem da suposição de que o futuro ocorrerá em conformidade com o passado. O Inquérito sobre o entendimento humano (1748) contém em germe o conceito de determinismo probabilístico, em que se apoia a ciência do século XX. Além disto, teve a virtude de despertar a Kant daquilo que ele mesmo designaria como “sono dogmático”, que o provocaria a empreender o caminho da formulação acabada de uma nova perspectiva filosófica, a transcendental.
Se nos voltarmos para a França, não é menor o impacto do empirismo. Na medida em que Condillac o radicaliza, transformando o ser humano numa simples máquina, incapaz de explicar a formulação mesmo dos conceitos mais elementares, para refutá-lo os ideólogos acabariam voltando sua atenção para a vontade, iniciativa de que Maine de Biran saberia tirar todas as conseqüências. Agora são as próprias categorias do eu, causa e liberdade que irão encontrar fundamentação empírica, a partir do ato voluntário.
Em Portugal, evitou-se ciosamente as diversas questões mais espinhosas.
Luís Antonio Verney (1713/1792) não se sente obrigado a enfrentar o aristotelismo a pretexto de que, achando-se o saber cristão nas Sagradas Escrituras, não poderiam as determinações dos Santos Padres ficar na dependência de uma personalidade de cuja existência sequer suspeitavam. E quanto à visível incompatibilidade entre a nova física e o saber de índole filosófica simplesmente a ignora, nestes termos: “E suponho que a Filosofia é conhecer as coisas por suas causas; ou conhecer a verdadeira causa das coisas. Esta definição recebem os mesmos Peripatéticos, ainda que eles a explicam com palavras mais obscuras. Mas chamem-lhe como quiserem, vem a significar o mesmo, v.g.: saber qual é a verdadeira causa que faz subir a água na seringa é Filosofia; conhecer a verdadeira causa por que a pólvora, acesa em uma mina, despedaça um grande penhasco é Filosofia; outras coisas a estas semelhantes, em que pode entrar a verdadeira notícia das causas das coisas, são Filosofia”.
(2)
Essa redução da Filosofia à Ciência, Verney a vinculava abertamente à tese da ilegitimidade da Metafísica. Segundo seu entendimento, o ensino da disciplina dever-se-ia reduzir a noções de História da Filosofia, com ênfase no período moderno; à Lógica, sem dar-se conta das verdadeiras implicações da nova doutrina batizada de teoria do conhecimento; à Física (admitindo uma introdução de natureza escolástica, de fato incompatível com o espírito da física newtoniana) e à Ética. Esta última permanecia como um elemento da tradição, ignorando a problemática do tempo, notadamente as novas doutrinas políticas.
Embora, por razões que se desconhece, a institucionalização do sistema que se propunha substituir a Escolástica não se tenha efetivado a partir da obra de Verney, os compêndios antes referidos seguem a mesma linha. Para comprová-lo basta examinar o conteúdo das Instituições de Lógica, de Antonio Genovesi (aportuguesado para Genuense)
(3) e das Instituições de Filosofia Prática, de Eduardo Job.
No verbete que escreveu para a Enciclopédia Filosófica (Roma, 1957), Capone Braga evidencia a complexidade (e a modernidade) do pensamento de Antonio Genovesi, o que de modo algum reflete-se na maneira como foi introduzido na cultura portuguesa, a partir de um manual simplificado, destinado a iniciantes (La Lógica per li giovenetti, 1766).
Genovesi ordenou-se sacerdote em 1737, aos 24 anos de idade, passando a residir em Nápoles onde teria oportunidade de assistir as últimas aulas de Vico. Tornou-se preceptor junto a famílias napolitanas, ficando famoso na cidade, razão pela qual seria convidado a ensinar na Universidade. Em 1743 publicou a primeira parte de uma obra dedicada à Metafísica, de que resultaria ser acusado de ateísmo e submetido ao Santo Ofício. Viu-se na contingência de elaborar um Apêndice, cuidando de explicar-se, dirigido ao Cardeal Inquisidor. Por instâncias da Universidade, redigiu um estudo sobre a natureza, a origem das idéias e os princípios de sua universalidade, transformado na Segunda parte da Metafísica, à qual seguiram-se Terceira e Quarta, estas voltadas para a Ética. Interessou-se pela Lógica, assunto que abordou em cinco volumes. Impedido de acender à cátedra de Teologia, como pretendia, ocupou-se nos anos que lhe restaram de vida (faleceria em 1769, aos 56 anos) à organização do que se considera haja sido o primeiro curso de economia da Europa, inaugurado em 1754, sendo posteriores à sua iniciativa aqueles estruturados em Estocolmo e Milão, nos fins da década de cinqüenta.
Capone Braga considera que Genovesi poderia ser denominado de filósofo da experiência, enquanto sustenta que a filosofia se move a partir da experiência e se refere à experiência, em que pese admitisse e enfatizasse o papel da crítica dos dados empíricos pela razão. A partir de uma classificação das idéias entende que no máximo se poderia indicar a existência de graus descendentes de certeza, motivo pelo qual a percepção direta não pode prescindir do concurso da razão. Além disto, entende ser impossível resolver a questão da origem das idéias, impossibilidade que decorreria da inexistência, no sujeito, de qualquer noção clara e distinta quanto à natureza da alma, o que impede se conheça a natureza última da percepção. Deste modo, procura incorporar certas premissas do empirismo lockeano à tradição racionalista. Ao mesmo tempo, opõe-se a Rousseau e a todos quantos minimizam o papel da razão. Lamentavelmente, o seu compêndio foi entendido entre nós como um conjunto de afirmações dogmáticas, que deveriam substituir a tradição escolástica, substituição essa que prescindia de qualquer avaliação crítica. Mais grave é que o novo sistema, destinado a substituir o antigo, se completava por uma defesa inconsistente do absolutismo monárquico. O imperativo de substituir esse sistema político, que logo adiante surgiria, levava facilmente à aceitação sem crítica das chamadas “idéias francesas”, o que aconteceu com quase todos aqueles que formaram seu espírito a partir do empirismo mitigado, de que seria exemplo dramático os padres radicais e belicosos egressos do seminário de Olinda. Por isto mesmo, a necessidade de demolir o empirismo mitigado, peça por peça, tornar-se-ia o grande desafio das gerações que, tanto em Portugal como no Brasil tornado independente, tiveram a incumbência de conceber todo um conjunto de instituições sociais e políticas. Precisamente isto nos obriga a ver exatamente em que consistia a mensagem do Genuense, independentemente do significado e da complexidade da obra de Genovesi.
Em que pese a diversificada discussão que sua definição suscitou, desde a Época Moderna, a Lógica (formal) diz respeito ao raciocínio demonstrativo. Consiste na exposição de um conhecimento existente e não na maneira de adquiri-lo. A sofisticação de que veio a revestir-se na Idade Média representa uma grande contribuição ao aprofundamento da análise dos conceitos e das implicações daí decorrentes na formação dos juízos. Genovesi naturalmente tinha tudo isto presente mas, nas Instituições da Lógica (tradução portuguesa de Miguel Cardoso, publicada pela Universidade de Coimbra em 1786) quis dar uma definição abrangente porquanto iria tratar da variada gama de assuntos, notadamente da disciplina moderna batizada de “teoria do conhecimento”. Define-a deste modo: “A Lógica é uma arte de cogitar, ou filosofar, isto é uma arte que aumenta, forma e governa a razão no estudo da Sabedoria”. Arte porque “ensina, dá os preceitos e as regras com que podemos realmente filosofar”. A Sabedoria é “a ciência das coisas divinas e humanas e das suas causas, dos seus fins, relações e usos”. Ensina também a seguir o bem e evitar o mal. Ciência seria o conhecimento “claro e evidente, adquirido com o uso da nossa razão”. Vê-se que não está interessado numa clara diferenciação entre arte e ciência, talvez porque isto o levaria a ter que distinguir ciência aristotélica da ciência moderna. De todos os modos, na incapacidade de logo estabelecer o desinteresse (e a incompetência) da ciência moderna por questões ontológicas, encontra-se um dos elementos distintivos do empirismo mitigado.
Depois de traçar-lhe brevemente a trajetória histórica ocupa-se destes temas: “Da natureza da alma e das causas dos erros em geral” (Livro Primeiro); “Das idéias, dos seus objetos e sinais” (Livro Segundo); “Da verdade, da falsidade e dos critérios da verdade em geral” (Livro Terceiro); “Do uso da Autoridade e da Arte crítica” (Livro Quarto) e “Das coisas que pertencem ao raciocínio” (Livro Quinto).
No Livro Primeiro, ainda que o autor enuncie um conjunto de advertências quanto à necessidade da prudência no empenho de adquirir a almejada Sabedoria (“não investigue coisas que consta serem sobre a capacidade humana”; “não indagues aquelas coisas para cuja ciência não adquiristes os meios” etc.), o texto acha-se sobrecarregado por grande número de definições esquemáticas (a alma e suas propriedades; entendimento; percepção, idéia; juízo etc., não apenas aquelas relacionadas à lógica formal mas dizendo respeito também a outras esferas, inclusive a moral), propiciadoras de entendimento esquemático e acrítico. A caracterização dos erros acha-se entremeada por um sem número de conselhos morais (as pessoas de temperamento mau e melancólico busquem abrandá-lo, fujam dos espetáculos trágicos, acautelem-se de juízos precipitados pois são inclinados ao fanatismo etc.).
No Livro Segundo, que seria aquele dedicado à teoria do conhecimento, o Manual omite a classificação das idéias pelas quais entendia o autor conhecemos a realidade que Capone Braga apresente deste modo: 1) idéias dos objetos sensíveis, sujeitas a erros mas de cuja existência não se pode duvidar; 2) idéias dos entes abstratos (matemáticos), que dão base a juízos certíssimos; 3) idéias pela experiência, mas relativas a objetos que não se podem perceber pelos sentidos (causa não experimental, Deus, etc.) que fornecem juízos seguros mas que não propiciam o mesmo grau de certeza das anteriores; e, finalmente, 4) idéias históricas, relativas a fatos não percebidos mas dos quais se tem o testemunho de pessoas que tiveram a experiência, que fornecem grau menor de certeza. Ao invés dessa classificação, o Manual trata das idéias sensíveis mas a distinção em que insiste é em relação ao que chama de "idéias fantásticas” (entes de razão, que só existem na imaginação como o “Monte de Ouro”, “o monstro de Horácio”, etc.).
Também este Livro Segundo acha-se sobrecarregado de definições de novos conceitos inclusive a caracterização das partes da Filosofia (Racional, Natural e Moral). A Racional seria constituída pela Lógica e, a Natural, pela Metafísica, Física e Matemática. Em favor de Genovesi deve-se registrar que distingue nitidamente conhecimento racional de fé e procura acautelar o aluno quanto a disputas teológicas (“Poucas coisas e modestamente se hão de disputar de Deus pela razão natural”). Embora esta última não esteja ausente, as coisas divinas se conhecem também pelas escrituras sagradas e pelas antigas tradições. Há aqui igualmente muita matéria de natureza lógica (sujeito; predicado; tipos de proposições; gênero de oposições das proposições, etc.). A matéria lógica voltará no Livro Quinto.
Distingue verdade moral de natural, metafísica e lógica, detendo-se tanto na sua conceituação como nos critérios em estabelecê-las. Aponta ainda os caminhos para a aquisição da Sabedoria, a saber: “a autoridade externa, as experiências dos sentidos, a íntima consciência e o raciocínio. Daqui se derivam todas as nossas idéias e todos os nossos conhecimentos. Fora destas fontes não sabemos, nem podemos saber, coisa alguma”. A autoridade pode ser dos sentidos, humana e divina.
A autoridade dos sentidos limita-se às coisas externas. Podem também advertir quanto à presença de qualidades ocultas que não percebemos diretamente (exemplifica com o imã e a agulha de marear, indícios de propriedades que não são “fabulosas nem sobrenaturais”). Por esse meio ascendemos às categorias (não usa a expressão) de existência, qualidade e propriedade. Contudo, para alcançar esse conhecimento “se deve ajuntar a razão com os sentidos, porque nestas coisas podemos enganar-nos e muitas vezes nos enganamos”. No tocante às essências (“principalmente das substâncias”), “de nenhum modo se podem conhecer pelos sentidos, porque as essências das coisas estão postas na união de todas as propriedades; os sentidos porém não podem representar todas as propriedades do corpo”.
As observações e experiências, facultadas pelos sentidos, devem ser realizadas com diligência, objetivando delas tirar as possíveis conseqüências. Por fim, estabelece as regras a partir das quais os sentidos podem nos propiciar noções claras e distintas, talvez seguindo mais ao método indutivo de Bacon que ao dedutivismo cartesiano. Apresenta ainda a curiosa advertência de que as regras de que se trata devem ser observadas não apenas por “físicos e médicos” mas também pelos políticos (“a cujo cuidado está cometida a tranqüilidade da sociedade”). Faz esta última advertência: “Advirto que desejo muito que os filósofos, de pouca idade principalmente, se instruam e exercitem nestes estudos.”
A obediência à autoridade humana também se subordina a múltiplas regras. No tocante à autoridade divina, é bastante prudente quanto aos milagres, deixando-os ao julgamento da Igreja. A esta também cabe a interpretação das divinas palavras, que chegaram até nós através das escrituras sagradas. “Naqueles lugares, porém, em que a Igreja ainda não interpôs o seu juízo, usará o filósofo das regras da sagrada hermenêutica, as quais aprenderá dos teólogos”. O Manual também trata de hermenêutica.
As breves indicações precedentes sugerem que, ao elaborar La logica per li giovenetti, Genovesi estava tentando interessá-los na ampla problemática suscitada pela Filosofia Moderna, na esperança talvez de que, por esse meio, os induziria a enfrentar sua vasta obra. Longe está, também, de atribuir tom dogmático às suas afirmativas. Seu empenho maior parece dirigir-se no sentido de formar consciências críticas. Ainda assim, tomada isoladamente, como se deu na nossa cultura, transformou-se num autêntico bloqueio à continuidade da investigação.
No caso particular da Lógica, o Manual do Genuense representa enorme atraso em relação ao progresso que na matéria os autores portugueses já vinham registrando. No notável estudo em que caracteriza amplamente a reação anti-escolástica, Joaquim de Carvalho teria oportunidade de chamar a atenção para o reconhecimento, mesmo sob D. João V, de que os compêndios da lógica aristotélica deixavam, nos que por eles se viram forçados a estudar, “a sensação de inutilidade e do tempo perdido”. Ou, para dizê-lo com as palavras, que transcreve, de Manuel de Azevedo Fortes (1660/1748), na sua Lógica racional, geométrica e analítica (Lisboa, 1744): “semelhante estudo mais servia para embaraçar e confundir as nossas idéias do que para aperfeiçoar as operações do nosso entendimento, que é o fim principal da Lógica”. Ao que acrescenta: “Dois anos mais tarde, em 1746, Verney na Carta VIII do Verdadeiro método de estudar, com menos saber que Azevedo Fortes mas com mais ardor combativo, defende igualmente a concepção de que a Lógica não é “mais que um método e regra que nos ensina a julgar bem e discorrer acertadamente”.
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Deste modo, embora o desfecho não traduzisse os seus propósitos, ao sobrecarregar a Lógica com grande número de questões, simplesmente postuladas e longe de devidamente esclarecidas, o Manual de Genovesi entroncou-se com a velha tradição dogmática. As questões não estavam ali para permitir que a cultura portuguesa se renovasse no contato com autores modernos mas para substituir as antigas teses escolásticas por novo dogmatismo.
Além disto, o que diz sobre a Física (subdividindo-a em Histórica e Dogmática), longe está de permitir a apreensão do verdadeiro sentido da ciência moderna, contribuindo para que o notável grupo de naturalistas formados pela Universidade renovada perdessem inteiramente o contato com a filosofia, o que de certa forma acabou por abrir o caminho ao cientificismo, que seria, no final de contas, a verdadeira herança pombalina, como indicaremos oportunamente.Finalmente, no que se refere à teoria do conhecimento, o Manual de Genovesi tampouco serviu para colocar a meditação portuguesa no âmago da discussão. Na altura, já se tornara evidente que não mais se tratava de discutir genericamente a origem das idéias mas de afunilar a discussão no sentido de precisar em que consistiria aquela “impressão primeira” de que falava Hume (ou como queria Silvestre Pinheiro Ferreira, o estabelecimento do processo de formação da linguagem) e, sobretudo, qual o papel e como se constituíam as categorias. Tivemos que esperar algumas décadas para alcançá-las, depois de rompida a crosta do empirismo mitigado.
Notas
(2) Verdadeiro método de estudar (Carta Oitava), Lisboa, Sá da Costa, 1950, Vol. III, p. 39.
(3) Mereceu reedição recente com Apresentação de Celina Junqueira e Introdução de Antonio Paim (Antonio Genovesi – A instituição da Lógica, Rio de Janeiro, Ed. Documentário, 1977).
(4) Introdução à tradução de Locke proibida sob Pombal, aparecida na Coleção “Subsídios para a História da Filosofia e da Ciência em Portugal — vol. II” (1950), reproduzida autonomamente no Brasil in O nascimento da moderna pedagogia: Verney, Rio de Janeiro, Ed. Documentário, 1979.

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